1.2.09

raining

Desde pequenina que sempre fui sozinha para casa. Para dizer a verdade, desde os 7 anos.

Visto com os olhos de hoje, é uma verdadeira loucura. Já ninguém põe uma menina de 7 anos num eléctrico e lhe diz para sair 5 paragens depois, depois de ver passar A Nortenha, o Palácio Anjos e o parque infantil. Pensando bem, já nenhuma menina de 7 anos sobrevivia sequer a 3 paragens seguidas dentro de um eléctrico.

É pena, como tudo mudou.

A começar pelos eléctricos.

Eram tão pequenos e simpáticos, com o interior de madeira e os bancos estofados a castanho. Parecia que tinham uma cor velha de propósito, para além de realmente o serem. No fundo, devem ter sido raras as vezes em que me sentava. Iam sempre cheios, de tão pequenos que eram, e mesmo que me sentasse rapidamente uma velhota me lançava um olhar aterrorizador e eu lá me levantava num ápice para lhe dar o lugar.

Sempre me enervou, a maneira como elas pediam os lugares. Como se exigissem. Como se o facto de eu me ter sentado após um dia inteiro de aventuras e travessuras no colégio fosse o mais horrendo crime à face da terra. Nem reparei que não havia mais lugares vagos, raio da velha!

Mas pronto, infelizmente, até isso mudou. Há coisa de um ano tive que andar de autocarro porque o meu carro estava na revisão e entrou uma velhota. Nem tive tempo de lhe dar o lugar, desta vez já de livre vontade, porque ela decidiu lançar o seu olhar aterrorizador para a senhora que estava à minha frente. Chamo-lhe senhora mas vai na volta até seria da minha idade ou pouco mais velha. Há dias em que até já me chamam "isso" a mim, imagine-se!

Pois a velhota nem teve tempo de se arrepender, levou uma desanda inacreditável da tal senhora! Pois quem julgava ela que era, para entrar no autocarro ao final do dia a exigir um lugar para se sentar?? Pois se nós andamos de autocarro é porque temos que andar e porque passámos o dia a trabalhar, estamos cansados e queremos ir para casa sentadinhos, que é o que merecemos. Pois se a senhora quer passear, então que passeie mas não venha cá exigir lugares porque para isso anda de autocarro sem ser à hora de ponta, que é quando se passeia! Onde é que já se viu? Eu, que trabalho, levantar-me para dar lugar a uma pessoa que anda aqui só porque bem lhe apetece?

Fiquei chocada. Horrorizada. Arrependida de todos os momentos em que em pequenina não fiz até um sorriso quando me levantei e não disse: "faça favor!".

Mas continuando. Mudaram os eléctricos e mudaram-se as vontades (como sempre) mas acho que nem só por isso já deixou de se mandar as meninas de 7 anos para casa sozinhas.

Já nem falo dos pedófilos, essa raça em expansão contínua que deixa toda e qualquer mãe aterrorizada e a roer as unhas o dia inteiro, falo até mais da quantidade de gadgets que uma criança precisa para andar por aí! O telemóvel, a carteira, os euros e todas essas preciosidades. Devo ter crescido no século passado porque na verdade não havia nada em mim que apetecesse assaltar além dos meus deliciosos caracóis!

Todos, todos, todos os dias lá ia eu de eléctrico para casa. Sozinha e de mochila às costas, de passe ao pescoço e com mais nada de valioso. E mais tarde fui para o liceu e lá continuava eu a ir, já sem farda e com o passe numa carteira, de mochila às costas já cheia de amigos. Tantas vezes havia em que não ia de eléctrico para esperar pelo 51 e ir com toda a gente que ia para Miraflores… e o 51 demorava horas a chegar ao liceu, horas a chegar a casa e ainda tinha que andar mais 10 minutos do que se tivesse apanhado o eléctrico.

E em todas estas alturas, do que eu mais me lembro era da chuva. Lembro-me que chovia, chovia e chovia. Os guarda-chuvas faziam questão de se deixar esquecer por cantos e recantos das escolas e eu tantas vezes que chegava a casa ensopada até às cuecas.

Lembro-me de ser pequenina e de subir a minha rua à chuva, de farda pelos joelhos e de joelhos ao léu, e de pensar: "Como é que Deus não percebe que não pára de chover há dias e dias e que já está tudo infeliz com esta chuva? Como é que é possível?".

Acho que nessa altura punha em Deus bem mais responsabilidade do que aquela que lhe cabe, mas se não o fizesse não estaria a ser uma boa pupila das centenas de freiras que me rodeavam durante todo o dia.

Passados tantos anos dei por mim a lembrar-me desse momento, por muito ridículo que tenha sido. E lembrava-me dele por uma razão muito específica: porque nunca mais chovia dias e dias seguidos! Nos últimos Invernos dei por mim a perguntar-me se será que tinha imaginado aquela chuva toda em criança e, se sim, porque é que me lembrava daquele grito de desespero a subir a minha rua? Terei inventado? Terá sido a minha imaginação a pregar-me uma partida?

Se não inventei, então porque é que já só chove uma hora seguida de cada vez e depois pára?

Porque é que entre cada dia de chuva aparecem 4 dias de céu azul?


E portanto estas últimas semanas até me tenho sentido bem com esta chuvada interminável. Tem-me sabido bem, tem-me levado aos tempos em que era pequenina.

Parece-me normal. Por muito parvo que seja, sinto tanto a falta de coisas que ainda são normais. Simples. Que não mudam. Está a chover há dias. O meu carro tem os limpa pára-brisas sempre ligados. O guarda-chuva é o meu melhor amigo e já não se deixa esquecer em canto nenhum. Mas é normal! E ainda chove! E por muito que eu rezasse, que por acaso nem rezo porque esta chuva me tem feito feliz, nunca iria parar de chover só porque eu decidi que estava farta. Porque é Inverno!

Tão bom.